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Nádia  Junqueira
Nádia Junqueira

Nádia Junqueira é jornalista e mestre em Filosofia Política (UFG). / njunqueiraribeiro@gmail.com

ORA, POIS!

O Brasil que sempre foi dividido

| 10.05.16 - 08:39
 
Brasília - “O Brasil está dividido. E quem dividiu foi o PT”. No mar de argumentações a favor do impeachment e condenando o (ainda) atual governo, essa foi e ainda tem sido uma das frases que mais passaram pelas tribunas do plenário da Câmara dos Deputados. Essa argumentação preocupa porque explicita que o que está em jogo nesse contexto é, de fato, muito mais que uma crise econômica, política, a corrupção e troca de governos. 
 
Não se trata da divisão verde-amarelo versus vermelho, contra impeachment, a favor de impeachment, fora Dilma e fora Cunha. A referida divisão, como disse, com todas as letras um deputado do Solidariedade, se trata: de homens versus mulheres, negros versus brancos, homossexuais versus heterossexuais, patrões versus funcionários, oprimidos versus opressores (sic).
 
Há dois pontos a serem observados: a divisão em si e o ódio que impera sobre os divididos. 
 
Esta divisão não parece ter sido inventada nos últimos 13 anos. Não está nas costas do PT. Ela sempre existiu e sempre guardou profundas violências que, com o passar do tempo, têm deixado de ser invisíveis e passaram a incomodar. Basicamente porque estas divisões são sustentadas por crueldade e injustiças que violam a liberdade humana. 
 
Imagino que, ao dizer que não há mais paz e há divisões, deputados e portadores desse discurso se refiram a episódios (praticamente inéditos, do ponto de vista histórico) como o que aconteceu há cerca de um mês em Goiânia. Na sala de uma turma de Psicologia da UFG um professor, de acordo com alunos da turma do 1º ano, reclamava do mau desempenho dos estudantes que acabaram de ingressar na universidade e creditou isso à política de cotas raciais. Com gritos de racista, ele foi constrangido a deixar a sala e a faculdade. 
 
E o que há por trás, então, desta cena de constrangimento? Considerada como um cenário de divisão e de fim de paz, por portadores deste discurso? 
 
Negros, que sempre foram os empregados domésticos, perceberam que têm o direito de também serem médicos, arquitetos ou o que quiserem. Empregados domésticos, por sua vez, perceberam que têm direitos trabalhistas como qualquer outro trabalhador. E que podem cobrar carteira de trabalho, férias, décimo terceiro e podem dizer não para a patroa. Já a patroa percebeu que pode ser injusto que seja a única responsável pelas atividades domésticas de uma casa onde há filhos e marido, além de também ser responsável pela renda do lar. Percebeu que pode conversar sobre isso. E que, se for agredida ao falar sobre isso, pode denunciar e que apanhar do marido é assunto de Estado. 
 
Sua filha percebeu que não está errado usar batom vermelho e andar de saia curta. E que se ela for assediada por conta disso, o problema está em quem a assediou e não em seu comportamento. Já seu amigo, homossexual, percebeu que não há nada de errado ter desejos e vontades diferentes da amiga, que gosta do sexo oposto. E que pode ter direitos como ela: de se casar com quem ama e de adotar filhos. Percebeu que não é ele e seus amigos que estão errados. São aqueles que batem e matam seus pares.
 
Essas percepções tiveram, com certeza, um empurrão das políticas públicas do Estado nos últimos anos. As cotas raciais começaram a ganhar a discussão no espaço público brasileiro em 2000 e em 2004 a UnB foi a primeira instituição a adota-las. A lei Maria da Penha foi sancionada em 2006 e a do feminicídio apenas no ano passado. Em 2011 o Supremo Tribunal Federal reconheceu a equiparação da união homossexual à heterossexual. A chamada PEC das domésticas foi promulgada em 2013 e somente no ano passado direitos como FGTS, seguro-desemprego e auxílio-creche foram estendidos à categoria. 
 
Não há como haver paz, com certeza, nesse contexto. Não se o outro lado não estiver disposto a enfrentar, de mãos dadas com o lado que emerge da marginalidade, as mudanças que caminham para uma coerência com a Constituição e com uma carta que, desde 1948, é sistematicamente ignorada e violada. 
 
Lembrando do incrível “Que horas ela volta”, temos, então, uma geração de novas Jéssicas (Camila Márdila) bem cientes de seu lugar. Que não é mais no quartinho dos fundos e que têm direito a uma cama boa e a uma vaga na universidade. 
 
Só pode haver paz em duas circunstâncias: quando se aceita o novo lugar de quem sempre esteve à margem dos direitos. Ou quando os marginalizados não chegam perto de seus direitos nem de reivindica-los porque não tem, sequer, ciência deles. Uma geração de Vals (Regina Casé), que vivem acomodadas no quartinho dos fundos alheias a seus direitos. É verdade, assim, a divisão parece não existir. Parece que todos convivem bem acomodados em seus devidos lugares historicamente construídos. Aí, não há alguma tensão. Há a permanência de uma desigualdade cruel travestida de paz.
 
Parece que temos que dar tchau, definitivamente, para pessoas como Val. As Jéssicas estão aí. Ninguém está mais disposto a dar um passo atrás rumo à perda de direitos. Por isso vai haver gritos em faculdades. Vai haver protestos nas ruas. Vai haver empregadas dizendo não para as horas trabalhadas no fim de semana não remuneradas. Tudo isso é, justamente, para corrigir um cenário centenário de violência sistemática. A fantasia de paz que havia sobre a crueldade das desigualdades vai embora. Está desnudo. 
 
Desnudo igualmente parece estar o ódio ao saber que este outro lado não quer mais ficar no seu lugar de sempre. O ódio que tenta manter a mulher, o negro, o pobre, o gay no mesmo lugar de sempre. A mulher ressentida no lar. O negro calado limpando o chão. Os pobres conformados distantes dos espaços de poder e de conhecimento. Os gays enrustidos no armário. Ninguém mais volta: nem para a cozinha, nem para o armário, nem para a senzala.
 
Ou construímos a paz aceitando isso e promovendo ainda mais circunstâncias para que todos saiam de vez desses espaços e floresçam em sua humanidade sendo o que são de forma livre e justa. Ou autorizamos a chegada do ódio e a volta, à força, para esses espaços. Prefiro, portanto, o lado do incômodo e da paz que ainda está sendo construída do que o lado dos que têm nostalgia da paz que guardava a crueldade escondida. E que, em nome dela, exalam o ódio que desumaniza e tira vidas.      

Comentários

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  • 02.06.2016 13:58 Cristiano Pires

    Concordo com seu texto. Apenas saliento que direcionar direitos 'especiais' a um determinado grupo não é nem justo nem correto. Penso que esse é um dos motivos de tantos debates. Sou contra qualquer tipo de cota racial ou comportamental. Penso que o melhor seria a cota social, que englobaria todos que realmente necessitam. Absurdo pensar que todo branco é rico! Absurdo pensar que sofre violência apenas pretos, mulheres, crianças e homossexuais! Penso ainda que escolhas são individuais, feitas por cada um. Como é individual, não precisa de direcionamento de ninguém. Muito menos do estado em salas de aulas! Veja aí o motivo de tanta briga. Não é simplesmente alguns conquistando espaço. Como tanta gente não quer voltar atrás de suas conquistas, o outro lado também não aceita 'imposição' da perca dos direitos! Como boa parte dessas conquistas estão sendo conquistadas 'na força', vai ter muita briga ainda! O melhor seria equiparar as 'conquistas', de modo que ninguém seja 'melhor' que ninguém. Haveria menos disputa e o aceite seria mais fácil. Na força definitivamente não é o melhor caminho. Vai dar briga, sempre...

  • 16.05.2016 20:14 Célio Silva

    Parabéns Nádia. Análise perfeita.

  • 14.05.2016 23:27 Carlos

    Parabéns! Texto irretocavel e de muita sensibilidade.

  • 13.05.2016 10:50 Mônica Regina dos Santos

    Parabéns, Nádia! Excelente o seu texto, vou compartilhá-lo e tomara que muitos façam isso. Talvez ainda haja neste país pessoas honestas e dispostas a pensar!

  • 11.05.2016 14:30 Cassia Oliveira

    Um texto honesto pra uma panaceia política. Parabéns!!!!

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Nádia Junqueira é jornalista e mestre em Filosofia Política (UFG). / njunqueiraribeiro@gmail.com

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