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José Abrão
José Abrão

José Abrão é jornalista e mestre em Performances Culturais pela Faculdade de Ciências Sociais da UFG / atendimento@aredacao.com.br

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Sobre colher flores em videogames

| 02.07.25 - 08:59 Sobre colher flores em videogames Henry em meio a um campo de flores (Imagem: divulgação/Warhorse Studio)
A vida está corrida e eu ando relapso com essa coluna: só no último fim de semana consegui ver "Homem com H" e "Pecadores", os dois grandes lançamentos de três meses atrás. A quarta temporada de "O Urso" veio e foi, já até renovaram para a quinta, e eu ainda nem vi o primeiro episódio.
 
O que fazer, então, nas pouquíssimas horas vagas?
 
Colher flores.
 
Nem estou de sacanagem. Nesse flerte cada vez mais próximo e normalizado com o burnout inevitável, tenho encontrado paz, pra variar, no videogame, algo que seus pais (ou talvez até você) considerariam uma grandessíssima perda de tempo e um desperdício de energia e dinheiro. Cada qual com o seu, podia ser pior, tipo sais aromáticos ou crossfit. Mas digresso. Tudo isso pra falar que o que tem trazido paz nas noites intranquilas é provavelmente pra muitos um dos jogos mais chatos da década passada: Kingdom Come - Deliverance.
 
Sim, esta é uma quase resenha de um título de 7 anos atrás, mas o texto é meu, se quiser procure sua própria coluna para chorar suas mágoas. Enfim. O que precipitou essa jornada foi o lançamento da sequência desse charmoso jogo indie este ano, porém eu não queria jogar o segundo sem jogar o primeiro, esquecido no meu catálogo interminável de jogos não começados e muito menos finalizados (e também porque só o Neymar tem dinheiro pra comprar um jogo no lançamento hoje em dia). Então lá fui eu dar uma chance para um jogo independente de 2018 sobre ser um plebeu analfabeto e que não sabe nadar em 1403.
 
E tem sido sinceramente a minha melhor experiência midiática este ano, já batendo nas 80 horas. Não quero que o jogo termine. E o principal segredo do seu sucesso retumbante é ser chato, meio parado, devagar. Nele você joga como Henry, um camponês bobão que pega em armas e jura vingança depois que sua vila é destruída. Apesar dessa premissa tão básica que ela poderia dirigir um HB20, os personagens são maravilhosos e as tramas paralelas são criativas e envolventes ao ponto de comporem o ponto mais forte da narrativa.
 
Mas para cumprir sua missão, a jornada é longa e o progresso é lento. O jogo é, na prática, um RPG, mas incorpora elementos de simulação e sobrevivência: Henry precisa se manter limpo; se alimentar bem; dormir bem; prestar atenção no que faz e no que fala para não ir parar no pelourinho e assim por diante. Aos poucos e beeeem devagar, você/Henry vão aprender a lutar, a caçar, a beber, a consertar sapatos, a cavalgar, a ler e a colher flores: plantas são fundamentais para aprender a ser um bom boticário.
 
O resultado, meio como na série de games da From Software como Dark Souls e seus semelhantes, é que cada pedacinho de progresso parece merecido, cada vitória uma recompensa em si mesma, uma prova de que você tentou, tentou, tentou e melhorou, sendo finalmente bem-sucedido. E acho que é isso o que torna o jogo tão atraente e que nos leva de novo para a reflexão cotidiana do começo deste texto.
 
Em um mundo em que toda a ralação parece levar apenas ao atendimento de emergência do Caps, em que meritocracia é tão real quanto à Fada do Dente e a Mão Invisível do Mercado e em que todo trabalho e esforço pessoal tende a te levar apenas a fazer zerinhos no chão sem sair do lugar, ver qualquer tipo de trabalho ou esforço ser recompensado é satisfatório como um bálsamo. Meu Henry não é mais um camponês burro, sujo e pobretão: ele cheira a lavanda, usa armadura polida, é um estudioso e quase poderia passar como o assistente adjunto de um escudeiro decente.
 
Faz falta no mundo real sentir que as coisas vão melhorar. Cumpre quase uma missão narrativa primordial poder conduzir, vicariamente, Henry em sua jornada de zero a herói sem ter que bater um ponto, responder a um e-mail nem fazer uma reunião.

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