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Adalberto de Queiroz

Do quintal ao Templo (pt. 2)

Poesia que convida à elevação mística | 19.08.25 - 07:52 Do quintal ao Templo (pt. 2) Dora Ferreira da Silva

Em 2006, no ano do centenário de Dora Ferreira da Silva, fomos brindados por uma edição que considerei como o lançamento do ano no mercado editorial brasileiro – “Uma Via de Ver as Coisas”. Era a segunda edição de um livro que foi pela primeira vez editado em 1973, como o segundo livro individual de Dora. Como assinala o jovem editor goiano Miguel Jubé: “É isso que trazemos de volta: o lugar de Dora Ferreira da Silva na poesia brasileira, pois se os que já a conheciam, aguardavam para revê-la tomar seu lugar, quem não a conhece pode se ater com o novo de uma conjunção de épocas”.
 

E em sua texto, Jubé assinala que a poeta, também tradutora e das boas, traduziu Angelus Silesius e fazia desse ofício uma constante: “A capacidade de dizer algo surpreendente do mesmo modo cotidianamente natural, comezinho, como nos chama para o almoço ou nos dá bom dia (...) Não pertences ao todo se fixo é o teu ser.”

Dora prefere a “subida em profundidade”, para usar a expressão de Enivalda [Eni] Nunes Freitas e Souza, na introdução deste livro: “Em ti começa a eternidade de passos que iniciam/teu rumo”.

Assegura-nos a professora Eni Freitas que “a poesia de Dora é um poço que conduz à subida, à elevação. A caminhada se faz por escamas límpidas de linguagem que de tão lúcidas ferem a vista, exigindo o excesso de clareza de repetidas leituras”.

Similar à inesquecível lição do professor José Fernandes sobre a poesia da goiana Sônia Maria Santos, aqui também é preciso que o leitor seja exigente consigo mesmo, em igual ou maior medida que a poeta o foi com a linguagem, pois afinal, “há algo de maravilhoso aprisionado no mundo que [só] o empenho da palavra poética pode libertar”, destaca Enivalda.

Dora Ferreira da Silva (1918-2006) é de uma geração que se reunia em sodalícios intelectuais em torno das revistas “Diálogo”, “Cavalo Azul” e de sua casa na rua José Clemente, em São Paulo, onde eram constantes as presenças de Vilém Flusser e sua esposa Edith, de pintores como Sansom Flexor, Mira Schendel, o filósofo (e marido de Dora) Vicente Ferreira da Silva, além de alunos seguidores do filósofo tcheco, como Milton Vargas. A poeta é amostra soberba de um país que já não existe, onde a convivência dos contrários era possível e fecunda.

Em livro recente sobre a vida do filósofo tcheco Vilém Flusser, Gustavo Bernardo diz que “José Paulo Paes reconhece Dora na linhagem daqueles poetas cuja palavra ronda as fronteiras do sagrado, vendo na realidade o espaço aberto da hierofania”. Poetar significaria, para Dora, “tecer símbolos salvíficos que nos ancoram novamente na verdade realidade. Por isso, poetar significa para ela o mesmo que orar ou rezar” (Vilém Flusser).

O exemplo candente disso é o poema Adoração, que o amigo agnóstico da poetisa (Flusser) traduziu para o alemão, sem verter o título:

"Difícil chamar-te pelo nome,
agoraque és tudo em meu chamado.
Ecoas. Água da sede,
bebo-te em silêncio. E despojo-te da imagemno
transparente ser e estar
sem perceber
que sou e estou
que és e estás

entregues ao não saber
do quando e ondes
empre e agora
e te sou
e me és

estando no infinito estar
sendo no infinito ser
que nos envolve e abarca
silenciosa viagem
adeus”.


Flusser, segundo Bernardo: “compara Dora a [Guimarães] Rosa: a prosa de Rosa se situaria em contexto religioso enquanto a poesia de Dora seria já expressão religiosa que requer análise paciente ao nível de cada poema, cada sentença, cada palavra”.

Vejam este poema:

“ÓRFICA
Não me destruas, Poema,
enquanto ergo
a estrutura do teu corpo
e as lápides do mundo morto.

Não me lapidem, pedras,
se entro na tumba do passado
ou na palavra-larva.

Não caias sobre mim, que te ergo
ferindo cordas duras,
pedindo o não-pedido
do que se foi. E tento conformar-te
à forma do buscado.

Não me tentes, Palavra,
além do serás
num horizonte de Vésperas.”


“Órfica” é um dos meus poemas prediletos neste livro. É possível compreendê-lo melhor pensando na entrevista de Dora concedida em 1999 e comentada por Gustavo Bernardo no livro citado acima. “Todo poeta tem um crítico lateral”.

 
“Ele [o poeta] não pode ser muito forte, porque senão é como a luz que entra na
câmera fotográfica: vela a imagem. Um poeta que seja muito crítico fará a
poesia sofrer, mas também não pode ser totalmente acrítico, não pode acolher
tudo o que lhe vem. Ao mesmo tempo, no entanto, chega perto de uma
concepção religiosa, epifânica, quase panteísta.
“Quando eu estou andando no caminho de Itatiaia e, de repente, vem um
pássaro, é um susto. E eu não sei mais se era um pássaro ou um
deus. Não é um exagero. Não é literatura. Deu-me um temor sagrado”.

Vejam o resultado poético:

ESPERANÇA 
Pousa num golpe o pássaro do verde
súbito nascido de seu voo.
Ecoa o telegrama em nosso peito.
Conferimos as poucas letras
de tão longe vindas
de tão fundo oriundas
vindas e chegadas
a um porto de partida.
Apagadas as letras
soletramos a sós
o sol
da comunhão com tudo”.


Dora foi premiada três vezes com o Prêmio Jabuti, uma com o Machado de Assis (da ABL); foi tradutora de Friedrich Hölderlin, Angelus Silesius, Rainer Maria Rilke, Carl G. Jung e São João da Cruz. A poesia de Dora foi traduzida para o inglês, o alemão, o espanhol, dentre outros idiomas. Deixou 15 livros de poemas, incluindo uma antologia (“Poesia Reunida”, 1999), uma peça de teatro e alguns contos.

Dora merece ser lida e relida por nos ter deixada uma poesia do mais alto nível em língua portuguesa. Para ela, há um “elemento sacerdotal na Poesia”, “concordando com Hölderlin quando este diz que a palavra é o mais inocente dos bens; no entanto, o mais perigoso”. Dora zelou desse bem como poucos homens e mulheres o fizeram na poesia brasileira.

TEMPLO IN ANTES

Antes, vigiando a cela do deus ausente.
Fora, o sol trançando a colunata,
infundindo vida à pedra fria.

Risos nos tríglifos, nos frisos,
na escalinata de passos e bulício.
Ausente a morte na Acrópole,
ausente a morte no sol de seu crepúsculo.

Pinheiros perfumados na colina das Musas
também vigiam. As eras encravam-se
na pedra alvíssima que o vento acaricia.

Colunas de ouro claro: viajantes da aurora
no mar revolto dos templos que irradiam.”


*Adalberto de Queiroz, 70, é jornalista e poeta. Membro da Academia Goiana de Letras e autor, entre outros, de “Entre esplendores e misérias” (Crônicas) e “Cadernos de Sizenando” (Poesia).

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