Último sábado, show de Gilberto Gil em Brasília. Não é preciso ser superlativo para exaltá-lo. Aos 82, o homem canta, toca e dança durante quase três horas sem interrupção. Sua turnê é mais que um concerto comum. A cenografia, repleta de imagens e cores, amplifica e multiplica os sentidos das canções e da própria história de Gil de forma nada comum.
O show é emocionante, mas me deixou com sentimentos mistos. À alegria de revê-lo, juntam-se certa nostalgia e uma ponta de tristeza. Embora ele mesmo já tenha dito que a turnê encerra apenas sua carreira de grandes shows, e não sua vida musical, a canção que lhe dá título - Tempo Rei - aponta para o inevitável: ídolos que marcaram pelo menos duas gerações, a dos meus pais e a minha, estão em avançada idade e o mais provável é que nós, mais novos que eles, os vejamos partir num futuro não tão distante assim. Gil, Caetano, Chico, Ney Matogrosso, Tom Zé, todos têm mais de 80 anos, e o tempo é senhor.
Mais que a idade desses homens que embalaram nossas vidas, e cujas longas sombras me lembram que eu mesmo já tenho menos tempo à frente do que atrás, a nostalgia tem também a ver com aquilo que Gil representa de uma possibilidade que parece perdida de Brasil. Sim, aquilo que, em ampla medida, o tropicalismo quis encarnar, mas que hoje se encontra fora de moda entre os ressentimentos de uma direita regressista e uma esquerda cada vez mais moralista: a ideia de que o Brasil, em sua miscigenação, poderia oferecer outro projeto civilizatório, nem antimoderno, nem pós-moderno, mas talvez “transmoderno”.
Socorre-me o filósofo Eduardo Giannetti, em seu
Trópicos Utópicos: “Por caminhos tortuosos e por vezes cruéis (...), fixou-se entre nós, no cerne da alma brasileira, a presença de atributos, sensibilidades e valores pré-modernos, de extração africana e ameríndia, e que para nossa sorte se revelaram capazes de oferecer tenaz resistência à invasão dos valores estritamente utilitários e competitivos da subcultura ocidental. Por isso, a espontaneidade e a capacidade de desfrutar vivamente o momento; o calor e a intensidade dos afetos nas relações pessoais (...) independente de racionalizações ou pretextos lógicos; a imotivada alegria que confere uma qualidade intensamente poética, cordial e lúdica à vida comum, não obstante a pobreza e a violência existentes”.
Todos esses músicos, como outros nomes em outras artes, expressaram em alguma medida essa ideia, de um Brasil sincrético e antropofágico que, por sua mistura e pela atitude poética e lúdica dela resultante, poderia produzir uma síntese entre o melhor do pré-moderno e do projeto moderno - razão e mistério, fé e lei, arte e ciência, festa e trabalho, liberdade e igualdade, tecnologia e natureza. Mas acho que Gil, em suas letras, que bebem de todas essas águas, ainda o encarna mais que todos.
Curiosamente, antes do show, é exibido um vídeo institucional da ONG Conservation International no Brasil, a que Gil empresta sua imagem e voz. Falando de nosso exuberante patrimônio natural e da riqueza e sabedoria de nossos povos, dialoga com esse projeto de Brasil, concluindo-se com a linda frase: “Nossa arte é preservar”.
Esse é o projeto! O que de melhor o Brasil tem a oferecer ao mundo é a tecnologia, a sabedoria, que legou às atuais gerações não a diversidade natural da Amazônia, do Cerrado, da Mata Atlântica e dos demais biomas, mas uma diversidade da vida que é fruto de outra forma de pensar os próprios limites entre o humano e o não-humano, entre sociedade e natureza.
A Amazônia e o Cerrado, vejam só, não foram preservadas pelas gerações de povos originários e de sertanejos e ribeirinhos e quilombolas e caiçaras que nos antecederam como moradores deste pedaço do planeta. Foram co-construídos por elas.
Esses povos e comunidades influenciaram profundamente a configuração dessas paisagens com seus modos de viver. Isso que hoje tomamos como “natureza intocada” é, na verdade, tão fruto de processos ditos “naturais”, quanto do trabalho e da mão desses pré-modernos ou antimodernos.
Plantando, domesticando, selecionando espécies, produzindo solos férteis, caçando e pescando, mas também relacionando-se com todos esses elementos de formas anímicas e simbólicas completamente diferentes das nossas modernas, eles moldaram esses territórios como os conhecemos hoje. Essas pessoas sempre interferiram profundamente na dita “natureza”, mas sempre o fizeram de uma maneira que multiplicou a vida, ao invés de restringi-la.
Fundamental entre seus modos de viver, está o traço comum de entenderem a si mesmos e ao mundo não somente através de valores de uso. Entre eles, o inútil é sagrado, e há sempre lugar e tempo para a beleza, como gostava de lembrar outro defensor da mestiçagem como valor maior brasileiro, o antropólogo Darcy Ribeiro.
Mas ver Gil, apesar de sua força e da beleza dos seus versos, me deixou com essa ponta de nostalgia, pois tudo isso parece um sonho que passou. Cá estamos nós, cada vez mais violentos e cínicos, divididos e embrutecidos, enquanto observamos impotentes ao colapso do projeto moderno e, ao que parece, de qualquer projeto de país. Resta-nos, a depender de que lado nos encontremos, acusar a esquerda de afundar o Brasil na corrupção e no pecado, ou a direita de jogá-lo no abismo do autoritarismo e do capitalismo selvagem.
Mas, o tempo é rei e, como sugere Giannetti, “o futuro se redefine sem cessar (...). Vem do breu da noite espessa, o raiar da manhã”.