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Pedro Novaes
Pedro Novaes

Diretor de Cinema e Cientista Ambiental. Sócio da Sertão Filmes. Doutorando em Ciências Ambientais pela UFG. / pedro@sertaofilmes.com

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Duas imagens e um país inacabado

| 19.08.25 - 11:19 Duas imagens e um país inacabado O autor, provavelmente com 11 anos, em campanha pelas Diretas Já (FOTO: ARQUIVO PESSOAL)
Nas últimas três edições da revista Piauí, o sociólogo José Henrique Bortoluci publicou uma série de textos intitulada “Geração Democracia”, em que entrevista e faz reflexões a partir de personagens brasileiros nascidos em meados dos anos 1980 — isto é, pessoas que só conheceram o país democrático da Nova República. Passados 40 anos da eleição de Tancredo Neves e da posse de José Sarney, o que essas vidas e olhares nos dizem sobre os caminhos do Brasil e de nossa combalida democracia?
 
Bortoluci tem uma capacidade rara para conectar o pessoal e o cotidiano ao fluxo da história, e para descrever sem julgar. Em seu livro O que é meu, conta de forma ao mesmo tempo generosa e contida a história de seu pai — seu Didi —, um homem simples, caminhoneiro do interior de São Paulo, que foi parte da transformação e integração do Brasil, trabalhando em obras como a Transamazônica. Da fala humilde e simples de Didi, emerge todo um país moldado a partir de suas violentas e injustas fronteiras econômicas.
 
Das conversas e reflexões com a geração dos anos 1980, não resulta nenhuma tese — o que é muito bom —, mas as vidas dessas pessoas e a maneira como se encaixam em nossa história e sociedade fazem evidentemente pensar. Deixam, é claro, um resultado um pouco amargo e de pouca esperança. Onde erramos?
 
Não sou dos anos 1980. Minha geração é a anterior à de Bortoluci e de seus personagens. Nasci em meados da década de 1970. Filho de pais politizados, e já por volta dos 10 anos à época da transição democrática, vivi com encanto todo o processo. Não sei exatamente por que, entretanto, desde o início, os textos de Bortoluci me fizeram lembrar de uma foto que antecede esse momento e conta outra história. Tentei achá-la e não a encontrei, mas coincidentemente me deparei com a que abre este texto. Deve ser 1985 ou 1986, estou no jardim da casa onde morávamos em Goiânia, vestindo uma camiseta da campanha “Diretas já” ao lado do Kiko, nosso doberman, que também se conecta por vias curiosas à política — já explico a razão.
 
A foto que não encontrei deve datar de uns seis anos antes. Nela, eu e outros meninos posamos sobre a mesa da varanda de uma casa cercada de vegetação. Esses amigos são Pablo, Luciano e Lucas. Não tenho certeza se João, meu irmão, também está na foto — talvez sim. Estamos sorridentes, provavelmente em meio a uma brincadeira pelo vasto quintal daquela casa, no bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro.
 
Imagino que essa foto tenha me vindo à mente, quando comecei a ler os textos do Bortoluci, pela imensa sombra que não mostra — e o fato de que não a mostre talvez fale muito sobre o que somos.
 
Lucas, um dos amigos na foto — provavelmente então também por volta dos seis anos —, é Lucas Guagnini, filho de Luís Rodolfo Guagnini, jornalista argentino que recém desaparecera — provavelmente dois anos antes dessa foto — nos porões da ditadura de seu país. 
 
Com a ajuda de amigos jornalistas, especialmente Newton Carlos, sua mãe, Monica, conseguiu se refugiar com o filho no Brasil. Os dois moraram por um tempo em nossa casa, no mesmo bairro de Santa Teresa, antes de se instalarem nessa casa da foto, no terreno onde moravam o jornalista e psicanalista Roberto Melo e a escritora Eloí Calage, pais do Pablo e do Luciano, que também aparecem na imagem.
 
Eu obviamente só vim a ter consciência de todo a sombra por trás dessas imagens muitos anos depois. Luís permanece como um dos estimados 30 mil desaparecidos e mortos pela ditadura argentina. Monica e Lucas conseguiram escapar entrando clandestinamente no Brasil.
 
No Brasil, claro, vivíamos também sob uma ditadura, mas já em seus estertores e em processo de abertura. Nada disso, entretanto, lançou qualquer sombra que eu sentisse à época sobre a minha infância, que foi muito protegida.
 
Há, evidentemente, uma ponte entre essa foto e a de 1985, e ela passa não apenas, mas também pelo cachorro. Kiko foi um bicho herdado do casal Marco Antônio e Terezinha Coelho. Do diretório do Partido Comunista Brasileiro, Marco foi político, jornalista e era deputado federal pelo antigo estado da Guanabara quando veio o golpe de 1964. Foi cassado. Em 1975, foi preso pelo regime e passou quatro anos encarcerado, período em que foi barbaramente torturado, o que o deixou com sequelas pelo resto da vida. Depois de solto, mudou-se com a família para Goiânia, onde, a convite do jornalista Batista Custódio, passou a trabalhar no jornal Diário da Manhã. 
 
No início da década de 1980, meu pai julgava-o morto, pois não tivera mais notícias suas. De férias com a família da minha mãe, na cidade de Alto Araguaia (MT), comprou o Diário da Manhã na banca e topou com o nome do amigo no expediente. Fez contato por telefone e recebeu o convite para escrever para o jornal. Desse trabalho inicial, viria o convite do mesmo Batista para que assumisse a direção de redação do Diário da Manhã, o que nos trouxe para Goiás.
 
Cerca de dois anos depois, Brasil em redemocratização, Marco Antônio e Teresinha decidiram voltar para São Paulo, e nós ficamos com o Kiko, que era um doberman ridiculamente manso. Do Marco Antônio, me lembro sempre que alguém acende um cachimbo, e me recordo também sempre de suas mãos trêmulas — herança dos porões — ao acenderem o seu.
 
Portanto, em uma e outra foto, os fios e a sombra do autoritarismo estão a nosso redor — e, ainda assim, dias luminosos de infância.


A cédula do meu voto de faz de conta em 1982 (Foto: arquivo pessoal)

Acho que minha apresentação à política se deu em 1982. Depois de muitos anos de governadores biônicos, ainda sob a ditadura do General Figueiredo, cujo neto golpista hoje faz lobby contra o Brasil nos Estados Unidos, houve eleições para os executivos estaduais e também para renovação do Congresso Nacional, das assembleias legislativas e das câmaras municipais. Despencamos de ônibus para o Rio de Janeiro — minha mãe, meu irmão e eu – para que ela pudesse votar. Do dia da eleição, guardei uma cédula  — uma amiga da minha mãe era mesária –, que preenchi com meus votos, obviamente os mesmos da minha mãe: Leonel Brizola para governador — com Darcy Ribeiro de vice — Saturnino Braga, senador, Mário Juruna, deputado federal. 
 
Não me lembro se fui ao grande comício, em abril de 1984, que lotou o centro de Goiânia com centenas de milhares de pessoas em meio à Campanha Diretas Já. Lutava-se então pela aprovação da emenda constitucional apresentada pelo senador mato-grossense Dante de Oliveira, determinando a realização de eleições diretas para presidente. Mas me recordo de acompanhar tudo com entusiasmo, como lembro da alegria com a eleição indireta de Tancredo e da tristeza com seu adoecimento e morte.
 
Assim, por mais que tenha nascido durante a Ditadura e que sua sombra tenha estado sempre muito próxima, minha infância foi muito mais marcada emocionalmente pelas cores e pelo entusiasmo com a democracia. Por isso, é especialmente frustrante constatar que ela, em larga medida, não tenha dado conta, nesses 40 anos, de entregar o país com que sonhamos, e que se encontre tão abalada.
 
Que o neto do General Figueiredo esteja hoje nos Estados Unidos dando consequências à sua herança golpista e autoritária e conspirando contra o país e a favor de um dos piores seres humanos que o Brasil já produziu — Jair Bolsonaro — dá medida do quanto estamos presos nesse novelo sombrio de um passado mal resolvido. 
 
Fico com a imagem das duas fotografias. A primeira, atravessada pela ausência e pela violência que não mostra. A segunda, ensolarada, com a ingenuidade de uma camiseta “Diretas Já” e de um cachorro dócil herdado de um sobrevivente. Entre elas, está a trajetória do Brasil: uma democracia sempre incompleta, sempre cercada de sombras, mas ainda teimosamente viva, apesar de tudo.
 
 
 
 
 
 

 


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