Quem em sã consciência consegue não se revoltar com o desastre ambiental causado pela empresa Ouro Verde, proprietária do lixão de Padre Bernardo, cidade a 255 km de distância de Goiânia e a 115 km de Brasília? Os vídeos, que circularam fartamente pelas redes sociais e imprensa, com o desabamento de milhares de toneladas de lixo sobre uma encosta da Área de Proteção Ambiental Federal do Rio Descoberto e atingiram as águas do córrego Santa Bárbara e do rio do Sal, em 18 de junho, são extremamente impactantes.
O pior é saber que foi uma tragédia anunciada e que poderia ter sido evitada. Os crimes ambientais já estavam largamente documentados pelo Ministério Público Estadual, MP-GO, e Secretaria do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do Estado de Goiás, SEMAD. E de que adiantou? O desastre aconteceu mesmo assim.
Sobravam irregularidades, desde o início do funcionamento do lixão, em 2016. O lixão estava encravado na Área de Proteção Ambiental do Rio Descoberto, cujo plano de manejo é totalmente incompatível com o funcionamento de um lixão. Motivo por si só mais que suficiente para que o lixão fosse proibido de funcionar naquele local.
E vamos dar nome aos bois. Aquilo nunca foi um aterro sanitário, como a empresa Ouro Verde insiste em dizer. Lixão e aterro sanitário são coisas completamente diferentes. Os aterros são locais preparados para receber os rejeitos e monitorados continuamente para minimizar os impactos ambientais. Já nos lixões, os resíduos são depositados em áreas sem qualquer tipo de tratamento e controle.
Eu conversei, longamente, com a promotora de justiça e coordenadora da Área de Atuação do Meio Ambiente do Ministério Público do Estado de Goiás, Daniela Haun, que acompanha o caso do lixão de Padre Bernardo, desde o início. Segundo a Dra. Daniela, os moradores do entorno do lixão sempre denunciaram os crimes ambientais cometidos pela empresa Ouro Verde, devido ao forte mau cheiro e receio de que a água e o solo estivessem contaminados.
Infelizmente, o medo da população não era infundado. De acordo com a promotora e com as perícias feitas por técnicos da justiça federal, o lixão de Padre Bernardo não tinha licenciamento ambiental para funcionar e atuava de forma totalmente irregular, fora das técnicas preconizadas para um aterro sanitário.
Os rejeitos eram depositados sem a devida impermeabilização do solo e sem o tratamento do chorume, líquido formado pela decomposição do lixo, com alta concentração de poluentes, que contamina o solo e o lençol freático, e representa sérios riscos à saúde humana e dos animais.
Durante quase dez anos de funcionamento do lixão de Padre Bernardo, a empresa Ouro Verde foi alvo de ações judiciais, embargo e suspensão de operação, impetrados pelo MP-GO e SEMAD, mas sempre recorreu e conseguiu reverter a situação, através de decisões provisórias de juízes do Tribunal de Justiça de Goiás e do Tribunal Regional Federal, apesar dos documentos consistentes apresentados, denunciando toda sorte de irregularidades e crimes ambientais. Foi preciso um juiz puxar todos os processos para a Justiça Federal.
Chama ainda mais a atenção, a prefeitura de Padre Bernardo ter concedido um licenciamento ambiental municipal para a empresa Ouro Verde, quando este tipo de autorização não compete ao município.
E mais. Ainda neste ano, a prefeitura fez uma licitação para a contratação de um aterro sanitário e a vencedora foi nada menos que a empresa Ouro Verde. O MP-GO entrou com outra ação na justiça, dessa vez contra a prefeitura, e a Central de Gerenciamento Ambiental Baru S/A, a segunda colocada no processo de licitação, entrou com mandado de segurança e conseguiu uma determinação judicial, que suspendeu da licitação.
Os rejeitos depositados ali não eram somente de origem pública. A maior parte do material que ia parar no lixão, era de empresas, grandes geradoras de resíduos, que contratavam a Ouro Verde para destinação final de seus rejeitos. Um negócio que movimenta somas vultosas de dinheiro. Vale lembrar que as empresas também tem responsabilidades sobre o destino de seus resíduos.
Depois do leite derramado, no caso 42 mil metros cúbicos de lixo que desabaram, a SEMAD interditou o lixão de Padre Bernardo e multou a Ouro Verde em R$ 37,5 milhões de reais. A Justiça também bloqueou bens no valor de R$ 17,1 milhões da empresa, como garantia de reparação dos prejuízos ambientais e sociais, de difícil cálculo, porque envolve ainda muitos danos indiretos.
Esta tragédia nos remete ainda à Câmara dos Deputados, onde tramita o projeto de lei 2159/2021, conhecido como PL da Devastação, que afrouxa as regras para a concessão de licenciamento ambiental, no país. Este projeto está para ser votado a qualquer momento e se aprovado, significará a perda de um instrumento fundamental para o combate a este tipo de crime e reparação dos danos.
Nem todas as denúncias, somadas à existência de leis ambientais avançadas, nem as atuações da Justiça Federal, do Ministério Público de Goiás e do poder público estadual conseguiram evitar o desastre ambiental provocado por um lixão dentro de uma área de preservação. Que o caso de Padre Bernardo seja punido exemplarmente e que coíba atuações de empresas, como a Ouro Verde, que destrói o verde para embolsar o ouro.